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Dentre as poucas novidades relevantes e com perspectiva de impacto nas contratações públicas, destaca-se o art. 79 da Lei nº 14.133/2021, que regulamenta o instituto do credenciamento.

Já não é segredo que a Lei incutiu nos administrativistas brasileiros uma alta expectativa de modernização nos processos de contratação pública, expectativa essa em grande medida frustrada pelo fato de que o legislador optou por replicar grande parte de conceitos, práticas e posicionamentos já existentes em normatizações anteriores. Fora o credenciamento, pouco mudou.

É bem verdade que o credenciamento não é uma figura propriamente nova no ambiente das contratações públicas, já que a doutrina¹ e jurisprudência² construídas à luz da Lei nº 8.666/93 já previam a possibilidade de sua utilização pelo gestor público. 

Acontece que agora ela está positivada no ordenamento e foi mais bem regulamentada pelo legislador, o que leva a necessidade de uma análise pormenorizada dos seus novos contornos jurídico-procedimentais. E é exatamente esse o objetivo do presente texto.

O que é o credenciamento? Entenda o contexto da Lei n°14.133/2021

Inicialmente é importante destacar que o credenciamento foi previsto na Lei nº 14.133/2021 como uma das espécies de procedimentos auxiliares, que nada mais são do que procedimentos que podem ser utilizados para auxiliar o procedimento licitatório ou mesmo vir a substituí-lo em certos casos. 

Trata-se, basicamente, de instrumentos à disposição da Administração para — à luz do princípio da eficiência — reduzir a complexidade e/ou até mesmo aumentar a celeridade da licitação.

São eles: 

  • Credenciamento; 
  • Pré-qualificação; 
  • Procedimento de manifestação de interesse; 
  • Sistema de registro de preços; 
  • Registro cadastral.

Sob a vigência da Lei nº 8.666/93, o credenciamento foi amplamente utilizado naquelas situações em que não era viável a escolha de apenas um particular para suprir os interesses da Administração; nas situações em que o mais vantajoso era a constituição de uma espécie de banco de fornecedores, composto por todos os particulares que preenchessem requisitos previamente fixados em regulamento. 

Surgindo a necessidade que motivou a instauração do ato de credenciamento³, um desses particulares era contratado para supri-la.

O que muda no credenciamento a partir da Nova Lei de Licitações?

Em linhas gerais, a Nova Lei conferiu ao credenciamento esse mesmo uso. Basta ver, nesse sentido, a definição prevista no inc. XLIII do art. 6º: 

“[…] processo administrativo de chamamento público em que a Administração Pública convoca interessados em prestar serviços ou fornecer bens para que, preenchidos os requisitos necessários, se credenciem no órgão ou na entidade para executar o objeto quando convocados”. 

Com efeito, seja sob a vigência da lei anterior ou da nova, o papel do credenciamento é permitir à Administração a inscrição em seus quadros de todos os licitantes que preencham os requisitos necessários para o fornecimento de determinado bem ou serviço, de forma a facilitar futuras contratações.

Visando diminuir o grau de generalidade desta definição, que ensejou uma série de utilizações equivocadas do instituto por parte dos gestores públicos, levando o TCU a desenvolver uma jurisprudência acerca da adequada utilização do instituto em situações concretas, o legislador estabeleceu nos incisos do art. 79 as hipóteses de utilização do credenciamento. São elas:

  1. Quando a contratação é paralela e não excludente, isto é, por motivos vários não há como atender ao princípio da competitividade simplesmente porque não há disputa para a seleção de um licitante vencedor. 

Trata-se de uma situação em que é vantajoso para a Administração realizar contratações concomitantes de um mesmo bem ou serviço (inc. I). Exemplo: contratação de todos os produtos necessários para o fornecimento de merenda escolar para os alunos da rede pública de educação;

  1. Quando a seleção do contratado é feita a critério de terceiros, ou seja, a seleção do prestador do bem ou fornecedor do serviço está a cargo não da Administração Pública, mas sim do beneficiário direto da prestação, cabendo ao Poder Público somente credenciar aqueles que atendem aos requisitos previstos em lei (inc. II). 

É o caso do credenciamento de laboratórios para a realização de exames pelo SUS. A Administração apenas cadastra os laboratórios regulares, cabendo ao cidadão escolher em qual irá se consultar;

  1. Quando o objeto da contratação está disponível em mercados fluidos, casos em que a flutuação constante do valor da prestação e das condições de contratação torna mais viável à Administração credenciar previamente uma série de potenciais interessados para, posteriormente, em razão da dinamicidade dos preços, contratar aquele com o melhor preço a época da contratação (inc. III). 

É o caso, por exemplo, do credenciamento de postos de combustível localizados numa determinada cidade e que estejam dispostos e sejam aptos a abastecer os veículos da frota oficial do Município.

Embora bem-vinda essa delimitação, parece não haver dúvida de que se trata de rol meramente exemplificativo. Por ter sua utilização atrelada à caracterização de hipótese de inviabilidade de competição, é materialmente impossível que o legislador aponte, de antemão, todas as situações concretas em que ele se fará necessário. A ver, porém, como se pronunciarão os tribunais sobre o assunto.

Credenciamento na Nova Lei de Licitações e Contratos: incisos e regras

É importante observar ainda que o legislador não limitou a regulamentação do credenciamento às hipóteses de cabimento, estabelecendo também uma série de regras a serem observadas pela Administração quando da edição/publicação do regulamento contendo os procedimentos de credenciamento. Vamos a elas.

Inciso I

Estabelece o inc. I do parágrafo único do art. 79 que a Administração deverá divulgar e manter à disposição do público, em sítio eletrônico oficial, edital de chamamento de interessados, de modo a permitir o cadastramento permanente de novos interessados. 

Esse sítio eletrônico oficial é o assim chamado Portal Nacional das Contratações Públicas (PNCP), nos termos do art. 174, § 2º, inc. III, da Lei nº 14.133/2021, mas nada impede que a Administração também divulgue o edital em outros sites objetivando garantir a maior divulgação possível, tal como o site oficial do órgão ou entidade responsável pelo credenciamento. A divulgação no PNCP é obrigatória e, em demais sites, facultativa.

Além disso, ao determinar nesse mesmo dispositivo que a Administração deve permitir o cadastramento permanente de novos interessados, o legislador endossou o entendimento firmado pelo TCU sob a égide da da Lei nº 8.666/93 (Acórdão 2.707/2014 – Plenário). 

Ocorre que, em certos casos, essa determinação pode gerar problemas. Basta pensar em um credenciamento destinado a selecionar escritórios de advocacia aptos a prestar serviços de gestão de carteiras massificadas de processos. 

Neste caso, a seleção e a contratação de um número de escritórios muito superior àquele passível de ser gerido e fiscalizado pode ter como consequência a prestação de serviços de baixa qualidade. Seja como for, infelizmente não previu o legislador exceções à exigência de abertura permanente do credenciamento a novos interessados.

Inciso II

O inc. II, por sua vez, prevê que na hipótese de contratação paralela e não excludente, quando o objeto não permitir a contratação imediata e simultânea de todos os credenciados, deverão ser adotados critérios objetivos de distribuição da demanda. 

Trata-se de regra que prestigia o princípio da isonomia, impondo a necessidade de a Administração tratar todos os interessados no credenciamento de maneira igualitária. 

Se todos os interessados que se mostrarem aptos serão selecionados, é importante que os critérios de aferição desta aptidão sejam rigorosamente os mesmos para todos os particulares, especialmente nos casos em que a quantidade da demanda não seja suficiente para a contratação de todos os particulares credenciados. 

Isto é, se há demanda para apenas um credenciado, é importante que a sua seleção seja realizada a partir de critérios objetivos e previamente delimitados, sob pena de possível ilegalidade.

Inciso III

O inc. III estabelece que o edital de chamamento de interessados deverá prever as condições padronizadas de contratação e, nas nas hipóteses previstas nos incs. I e II do art. 79, deverá definir o valor da contratação. 

O estabelecimento de condições padronizadas de contratação segue a mesma lógica do estabelecimento de critérios para a seleção do particular credenciado a ser contratado: prestigia o princípio da isonomia, permitindo que os particulares definam de antemão se possuem condições de fornecer o objeto adequado para suprir com as necessidade da Administração. 

Até por isso é importante que o edital de credenciamento contenha as especificações técnicas do objeto a ser fornecido, bem como as exigências de habilitação a serem cumpridas pelos interessados como condição para se credenciarem.

A necessidade de definição do valor, por sua vez, é uma regra geral de toda contratação pública, afinal, é imperioso que a Administração faça uma pesquisa de mercado e defina o preço adequado e justo para a remuneração dos serviços que serão prestados pelos particulares. 

Por outro lado, tal definição é impossível na hipótese de contratação de objeto em mercado fluido que, como visto, pressupõe a impossibilidade de definição de um valor definitivo ante a constante flutuação do mercado. 

Inciso IV

Por isso, o inc. IV dispôs que em tais casos a Administração deverá registrar as cotações de mercado vigentes no momento da contratação, isto é, não há a necessidade de definição prévia do valor, mas sim o registro posterior dos preços cobrados pelos particulares para a prestação do serviço no momento em que necessária a contratação, e isso para possibilitar a contratação mais vantajosa para a Administração.

Inciso V

Já o inc. V estabelece que não será permitido o cometimento a terceiros do objeto contratado sem autorização expressa da Administração. Com efeito, o credenciamento é, via de regra, um instituto personalíssimo, devendo a necessidade da Administração ser suprida pelos particulares que foram credenciados, e não por terceiros por eles contratados, que somente podem participar da prestação do serviço ou fornecimento do bem com consentimento expresso. 

Há de ser seguida, aqui, a mesma lógica que rege a subcontratação de obras que, como se sabe, é admitida, exceto quando serve de subterfúgio para a cessão total do objeto do contrato.

Inciso VI

O inc. VI prevê que será admitida a denúncia por qualquer das partes nos prazos fixados no edital. 

Isso quer dizer que tanto o particular pode se desvincular do credenciamento caso assim deseje, quanto que a Administração pode descredenciar particular que não cumpra com as condições fixadas no regulamento ou que pratique ato contrário à ordem jurídica e que atenta contra os objetivos do procedimento — isso, claro, com a garantia dos direitos ao contraditório e à ampla defesa. 

Em qualquer caso, é recomendável que o órgão ou a entidade credenciadora discipline a questão no edital de chamamento público, fixando os comportamentos passíveis de ensejar o descredenciamento e o procedimento a ser seguido para que ele ocorra de maneira legítima.

Conclusão

Em uma palavra final, o legislador fez bem ao regulamentar de forma mais clara e detalhada o instituto do credenciamento, garantindo ao gestor público uma maior segurança para a sua utilização e, consequentemente, aumentando as chances de um uso mais assertivo e eficiente do instituto.

Notas

[1] Ver JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 18. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019. pp. 74-78.

[2] Por todos, ver Acórdão no 3.567/2014, proferido pelo Plenário do Tribunal de Contas da União.

[3] Aqui há uma diferença relevante. Enquanto sob a vigência da Lei nº 8.666/93 o credenciamento era entendido pela doutrina e jurisprudência enquanto um ato administrativo, a Lei nº 14.133/2021 o previu como uma espécie de procedimento.