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Uma nova Lei de Licitações: por que e para quê?

By November 7, 2019April 17th, 2023No Comments

Nosso sistema de licitações está fragmentado, sujeito a vários microssistemas

Caminha no Legislativo o projeto da nova Lei Geral de Licitações. Ela se propõe a substituir a Lei 8.666 de 1993, que há mais de vinte e cinco anos disciplina as licitações e os contratos administrativos no Brasil.
Diante dessa perspectiva, a primeira pergunta que se coloca é, qual é afinal de contas a necessidade de mudar a Lei. Apenas o decurso de prazo? Nesse tempo houve alterações que precisam ser compiladas? Ou vai se estruturar uma nova racionalidade acerca dos temas da licitação e do contrato?
Para responder a essas questões é o caso de fazer um breve retrospecto acerca do tempo em que a Lei 8.666/93 ocupou o papel de Lei Geral.
Como se sabe, a Lei 8.666/93 foi produzida como resposta aos escândalos de corrupção que derrubaram o Governo Collor. Acreditava-se (como se acredita ainda hoje) que uma Lei nova teria a capacidade de produzir um ambiente ético nas relações contratuais entre Estado e particulares.
O projeto da Lei era ambicioso: ela pretendia regular virtualmente todas as relações contratuais entre a Administração e os particulares. Ele valeria para todas as espécies de contratação que não tivessem regulação própria, bem como para toda a Administração (considerando aqui as diversas camadas federativas). E assim o foi no início: a norma incidiria sobre toda a Administração Pública, inclusive pessoas jurídicas de direito privado, assim como valeria em todos os municípios. Ela serviria para comprar canetas esferográficas e para construir hidrelétricas, do Oiapoque ao Chuí.
Os modelos da Lei 8.666/93 e os procedimentos previstos se marcavam pela rigidez. Nada que não estivesse previsto na Lei (seja quanto às espécies e modalidades de contrato, seja quanto aos contratos) poderia ser admitido. A Lei geral fazia lembrar a velha frase Bugnet a propósito do Código Napoleônico: “eu não conheço licitações, eu ensino a Lei 8.666/93”. Todo o processo de contratação passou a ser visto a partir das chaves de interpretação desta lei geral.
Contudo, esse pressuposto centralizador, logo foi sendo posto em xeque. A realidade teima em lançar desafios que escapam ao Legislador. A partir disso, diversos sistemas de contratação paralelos foram sendo criados, para regular temas antes submetidos à Lei 8.666/93.
Primeiro, as leis que regularam as concessões estipularam regras próprias para essas modalidades. Depois veio a onda do pregão que retirou os “bens e serviços comuns” do guarda-chuva da Lei 8.666/93. Depois, os mega-eventos esportivos trouxeram o Regime Diferenciado de Contratação (RDC), que inova substancialmente na forma de contratar obras complexas, aproximando os contratos públicos dos contratos de EPC do mundo privado. Surgiram ainda os “processos de manifestação de interesse” quebrando a lógica originária de que o particular que atua na fase de concepção do contrato não deve participar da licitação, pois ele contaria com vantagens se assim fosse. Recentemente, a contratação pelas estatais foi objeto de disciplina própria, criando um regime que busca derrogar em bloco a Lei 8.666/93.
Ou seja, as diversas exigências postas à contratação pública conduziram à perda da centralidade da Lei 8.666/93.
Hoje, nosso sistema de licitações está fragmentado, sujeito a vários microssistemas. Isso tudo colocando desafios ao intérprete que deve estipular casuisticamente o que compete ao regime geral e o que é objeto de regulação específica. Isso aumenta os custos de transação da contratação administrativa, aumentando a insegurança jurídica.
A tentativa de editar uma nova lei geral tenta restaurar o regime da 8.666/93, ainda que se reconhecendo, a priori, que alguns contratos devam ficar de fora dela (estatais e concessões, p. ex).
Sua proposta é similar à 8.666/93. Uma lei detalhista que visa a disciplinar todos os aspectos da contratação pública. Suas novidades em grande medida residem na incorporação de soluções já experimentadas em outros sistemas de contratação, que passam a ser incorporadas ao regime geral.
Claro que há aspectos verdadeiramente inéditos, contudo, eles são poucos. No que toca ao espírito da lei nova, investimos no mesmo modelo que já testamos. Renova-se a fé na ideia de que controlar com rigor o processo de contratação é algo que tornaria os contratos públicos menos sujeitos à corrupção.
Ignora-se, contudo, que a Lei 8.666/93 nunca foi capaz de evitar atos espúrios envolvendo a Administração e os particulares, que dizem muito mais com o sistema que autoriza a captura política das licitações e contratos. Os famigerados requisitos de habilitação nunca foram capazes de evitar a possibilidade de direcionamento dos certames. Muito pouco se inova na ampliação da competitividade, verdadeiro nó górdio da boa contratação pública.
Quanto aos contratos, a Lei quase nada se traz de novo. Continuamos acreditando na força mística das “cláusulas exorbitantes” que não raro se transformam em instrumento de arranjos não republicanos, ao autorizar que maus administradores usem o seu poder para vender “dificuldades” ou “facilidades” ao contratado.
A Lei nova segue a mesma metodologia da anterior: ela continua disciplinando de modo detalhado o procedimento licitatório, investindo em categorias fechadas. Os contratos ainda seguem o modelo tradicional, focado nas prerrogativas da Administração como nota caracterizadora aplicável a todos os vínculos negociais celebrados com particulares.
Nesse contexto, pouco sobra ao administrador, que deve aplicá-la de modo mecânico. Mais do que isso, a Lei deve ser aplicada de modo homogêneo no Brasil todo. Trata-se uma Lei que não tem qualquer capacidade de se adaptar. Num momento em que a evolução tecnológica lança cada vez mais desafios para o Estado, num país com diferenças substanciais de demandas, acredita-se numa Lei nova que seja capaz de dar conta de tudo.
Em suma, a Lei nova é uma atualização da Lei 8.666/93 e não a ruptura de um paradigma. Sua incapacidade de se adaptar a novas exigências levará à criação de outros sistemas de contratação e de regras próprias. Provavelmente daqui a algum tempo estaremos a discutir a nova, nova lei de licitações.

Trata-se de uma Lei nova que nasce de um espírito velho.

Ela tende, assim como a 8.666/1993 a ser objeto de rupturas que comprometerão o seu projeto de ser uma lei geral. Melhora teria sido criar uma Lei capaz de coexistir com a mudança, permitindo a utilização de soluções novas, sem a necessidade de modificar a Lei. Nosso problema com as licitações e contratos nunca foi a legalidade, mas sim a necessidade de termos um sistema capaz de gerar segurança jurídica e conviver com as peculiaridades que fatalmente se apresentarão no futuro.
Novamente investimos na rigidez de formas como método, ignorando que cada vez mais o direito administrativo está obrigado a conviver com a mudança. Diante da constatação de que as licitações precisam mudar, dobramos a dose de um remédio que já se mostrou ineficaz. Queremos mudar para deixarmos as coisas exatamente como estão.