Proteger interesse econômico do concessionário é tão importante quanto assegurar prerrogativas do Poder Concedente
Contratos de concessão, em regra, se extinguem quando atingem seu termo. Essa é a sua “morte natural”, como diria Orlando Gomes. Há, todavia mortes traumáticas. Eis que no curso do processo algo acontece e impede o contrato de resquiescat in pace.
Uma das hipóteses de rescisão anômala é possibilidade de o Poder Concedente, titular do serviço, retomá-lo. É o que a Lei de Concessões chama de encampação (art. 36). Como toda extinção antecipada de contrato, a hipótese traz consequências econômicas. Aqui, o que está em causa é a extinção antecipada do contrato, por razões de interesse do Poder Concedente. Logo, a indenização que se põe aqui é a mais ampla possível. Em termos simples, a decisão de encampar significa expropriar o concessionário do direito de executar o contrato até seu fim.
Portanto, a indenização devida ao particular envolve todos os custos relativos à extinção do contrato e, também, os lucros que ele auferiria se tivesse podido executar o contrato até o fim (art. 37). É o regime que se impõe ao sacrifício de direitos dotados de expressão pecuniária. O direito de executar o contrato de concessão até o fim tem expressão econômica.
Logo, toda encampação tem inegáveis impactos econômicos. O exercício da prerrogativa prevista em lei depende, portanto, de aspectos que transcendem a vontade política. Como diz a lei, o pagamento da indenização é condição para que haja a encampação. O contrato só poderá ser extinto, de fato, quando houver pagamento da indenização necessária. E isso condiciona, materialmente, o exercício do direito de encampar.
Este aspecto econômico é decisivo para que se compreenda a natureza jurídica do procedimento de encampação. E ele habitualmente é ignorado pela doutrina, que se foca em analisar em abstrato os eventuais requisitos do ato de encampação. No entanto, é a questão orçamentária o verdadeiro nó górdio da encampação. Não é à toa que na experiência brasileira as encampações moram muito mais no mundo do dever ser do que no do ser: há custos substanciais para tanto.
Colocadas as coisas nessa perspectiva, é possível refletir acerca do procedimento de encampação, que conjuga uma série de medidas em nível administrativo e legislativo, o que torna essa modalidade de extinção peculiar, pois as outras não necessitam dessa articulação. O procedimento de encampação é sui generis, exatamente, porque ele exige uma coordenação de atos entre Executivo e Legislativo, de modo a permitir a efetiva retomada do serviço. A encampação é uma ópera em três atos.
O primeiro ato é da formação pelo Poder Concedente da decisão de retomar o serviço. Ao contrário do que se possa pensar, é ao Executivo que compete manifestar a vontade de retomar o serviço. A lei autoriza essa medida, mas não a impõe. O Legislativo tem o papel de ratificar a decisão de retomar o contrato. Com efeito, lei que pretendesse impor, sem concurso da vontade do Poder Concedente, a encampação seria inconstitucional por ofender a separação de poderes. Há aqui quase que uma espécie de ato complexo, cuja última vontade deve ser emanada pelo Legislativo, que autorizará a medida por meio de lei de efeitos concretos. Somente a confluência de ambas as vontades (Legislativo e Executivo) é que pode produzir de modo válido o resultado.1
Por outro lado, a decisão de retomar a atividade é um juízo político (assim como o de conceder o serviço). E isso predica que as razões para a retomada do controle não podem ser controladas pelo Judiciário, salvo em havendo desvio de finalidade ou situação de violação a regras procedimentais. Isso, todavia, não significa que as razões de interesse público para a retomada do serviço possam ser omitidas, no melhor estilo fi-lo porque qui-lo. Aplicam-se aqui por simetria os mesmos standards necessários para definir a conveniência de conceder o serviço, tal como previsto no art. 5º da Lei 8.987/1995. Embora não caiba ao Judiciário controlar as razões de interesse público, a fundamentação poderá ser analisada pelo Legislativo, assim como a justificativa é fundamental para analisar eventuais desvios de poder. Um dos pontos fundamentais aqui é a necessidade de se apresentar o modo pelo qual o serviço continuará sendo prestado, pois não se admite interrupção na sua oferta. Retomar o serviço exige ou que o Estado assumirá sua prestação direta ou que ele vá reorganizar o modo pelo qual a atividade será prestada.
Uma vez manifestada a intenção de encampar os serviços, surge o dever incontinenti de instalar processo administrativo para calcular a indenização devida ao particular. Cuida-se aqui de competência vinculada. Não se pode falar em encampação sem, de pronto, tratar da indenização devida.
Por evidente, o levantamento desse valor não se dá de modo unilateral. Ele exige que haja a efetivação do contraditório e da ampla defesa. Como é intuitivo, o cálculo do valor por vezes pode ser complexo, sendo necessário levar em conta todos os aspectos envolvidos na extinção do vínculo. Respeitar isso é fundamental para que se processe a encampação. Sem que haja respeito aos direitos patrimoniais do particular, especialmente no que toca à definição do valor da licitação, o que há é abuso e desvio de finalidade.
Por outro lado, não basta apenas definir o valor da indenização. É necessário demonstrar que há recursos para que ela seja paga de pronto, pois apenas assim é que se poderá, de fato, extinguir o contrato. Isto é, somam-se à questão da definição do valor circunstâncias de natureza orçamentária. Não basta definir quanto deve ser pago, mas sim indicar que há capacidade de realizar o pagamento devido.
Nesta linha, o Executivo deve indicar nos termos do art. 16 e 17 da LC 101/2000 de onde retirará os recursos necessários para pagar a indenização devida. Com efeito, o Executivo não pode pretender criar uma despesa para a qual não tenha disponibilidade orçamentária.2 Isso, inclusive, se caracterizaria como improbidade administrativa. Se não houver disponibilidade orçamentária para tanto, o Executivo deve, antes de seguir adiante, requerer a abertura de créditos suplementares para fazer frente à indenização que pagará.
Ou seja, é absolutamente irregular do ponto de vista do direito financeiro que se pretenda seguir adiante com encampação em que, primeiro, não se definiu o valor e, segundo, não se demonstrou haver disponibilidade orçamentária para fazer frente à indenização.
Admitir isso seria tolerar que houvesse a assunção de obrigações pecuniárias por parte do Estado cujo valor é desconhecido, o que nada mais é do que irresponsabilidade fiscal. Ou ainda admitir que se reconhecesse uma obrigação, mas não se indicasse concomitantemente de onde saíram os recursos para pagá-la.
Ou seja, a efetividade da encampação depende de se ter capacidade efetiva de indenizar o concessionário. A decisão política esbarra nos limites orçamentários. O interesse público não é um título metafísico que se possa usar para agredir direitos econômicos dos particulares. Logo, a encampação pode e se submete a contingências orçamentárias. A competência de retomar o serviço, para ser exercida em concreto, exige que existam recursos materiais que permitam sua implementação.
O segundo ato do procedimento de encampação é legislativo. Uma vez que o Executivo tenha levantado o valor da indenização e detenha os meios de pagar o valor devido para exercer o seu direito de retomar o contrato, ele deverá solicitar ao Legislativo autorização para ultimar sua decisão.
O Legislativo deverá analisar a questão avaliando a questão política, podendo recusar-se a reconhecer a existência de interesse público para fins de rescindir o contrato. Deverá também avalizar os efeitos orçamentários decorrentes do ato. A lei autorizativa é típica lei de efeitos concretos que se sujeita à mesma espécie de controle dos atos administrativos.
Com efeito, o papel da lei autorizativa envolve: (i) avaliar a conveniência política da rescisão, (ii) atestar a regularidade do procedimento de cálculo da indenização e (iii) concordar com afetação de recursos orçamentários para fins de pagamento da autorização.
Editada a lei autorizativa, abre-se o ato final da encampação. Nesse caso, cuida-se apenas de dar execução material à decisão de extinção do contrato. Isso implica efetivar o pagamento da indenização e organizar a transição da atividade, que não admite solução de continuidade. Perceba-se que a efetiva extinção do contrato depende do pagamento da indenização: sem isto, o particular persiste tendo o direito de executar o contrato.
Com efeito, depois de editada a autorização legislativa, em tese, os atos que se seguem são apenas a execução material da deliberação já formada que concertou as vontades do Executivo e do Legislativo no sentido de se promover a retomada do serviço. Lembre-se ainda que, no caso da encampação, a Lei Autorizativa é o que consubstancia a decisão final acerca da questão. Nessa linha, se requerida e autorizada a encampação, não poderá mais o Executivo se retratar da questão, devendo dar execução material à lei. A retratação da decisão exige que haja lei que autorize a tanto.
Assim como celebrar contratos de concessão é complexo, extingui-los também é. Muitas vezes, os contratos deverão ser mantidos pelo fato de que não há condições materiais de extingui-los. E isso é natural. Contratos de concessão implicam a necessidade de investimentos privados. E proteger o interesse econômico legítimo do concessionário é tão importante quanto assegurar as prerrogativas do Poder Concedente.
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1 Nesse sentido JUSTEN FILHO, Marçal. Teoria geral das concessões de serviço público. São Paulo: Dialética, 2003, p. 583.
2 Em decisão recente a Presidência do STF já teve oportunidade de correlacionar a lei autorizativa à questão da autorização para efetivação de gasto com a indenização, assim como destacar a necessidade de se respeitar o art. 16 da LC 101/2.000 cf. (Rcl 34130, Relator: Min. Dias Toffoli, julgado em 16.5.2019.