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A PRESCRIÇÃO INTERCORRENTE NO ÂMBITO DOS PROCESSOS ADMINISTRATIVOS ESTADUAIS, A JURISPRUDÊNCIA DO TJPR E A LEI ESTADUAL N. 20.656/21

By September 15, 2022April 17th, 2023No Comments

Por Bernardo Strobel Guimarães, Jordão Violin e Luis Henrique Braga Madalena.  

Os processos administrativos, assim como os processos judiciais, estão sujeitos a duas espécies de prescrição: a prescrição material e a prescrição intercorrente, ambas reguladas pela Lei nº 9.873/99. A primeira tem o prazo de cinco anos para se consumar, contados da data da prática do ato ou, no caso de infração permanente ou continuada, do dia em que tiver cessado, e acarreta a perda do direito da Administração instaurar o auto de infração ou, quando já o tiver feito, de dar continuidade à ação punitiva (art. 1º da Lei nº 9.873/99).

A prescrição intercorrente, por sua vez, decorre da paralisação injustificada de processo administrativo por mais de três anos, e acarreta seu arquivamento. Se for o caso, deve-se apurar a responsabilidade funcional decorrente da paralisação (§ 1º do art. 1º da Lei nº 9.873/99).

De acordo com entendimento do Superior Tribunal de Justiça, entretanto, a Lei nº 9.873/99 não se aplica aos processos administrativos estaduais e municipais. Isso porque sua incidência é limitada à Administração Pública Federal – REsp nº 1.115.078/RS. Ou seja, aos processos administrativos estaduais e municipais não se aplicam os marcos prescricionais previstos na mencionada legislação, que estão sujeitos somente à prescrição quinquenal prevista no art. 1º do Decreto nº 20.910/32. Há aqui um ponto de atenção: também é o entendimento do STJ que esse Decreto regula somente a prescrição material. A prescrição intercorrente está fora de seu alcance – AgInt no REsp nº 1.770878/PR.

Em resumo, para o STJ: a) a Lei nº 9.873/99, que estabelece os marcos prescricionais aplicáveis aos processos administrativos, tem sua incidência restrita à Administração Pública Federal; b) aos processos administrativos estaduais e municipais se aplica somente o Decreto nº 20.910/32, que trata somente sobre a prescrição material. Desse cenário se extrai a seguinte conclusão: a prescrição intercorrente atinge somente os processos administrativos federais, jamais os estaduais ou municipais, exceto quando existir legislação local específica sobre a matéria.

Isso não significa, contudo, que a administração possa paralisar longa e injustificadamente um processo administrativo, expondo o administrado à eterna indefinição sobre sua situação jurídica. No Paraná, por exemplo, a 5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça firmou o entendimento de que o abandono injustificado de processo administrativo por parte do Poder Público por mais de cinco anos viola o princípio constitucional da duração razoável do processo e, consequentemente, autoriza a declaração de nulidade do processo.

Veja-se, pois, que embora reconheça a inaplicabilidade da Lei nº 9.873/99 aos processos administrativos estaduais e municipais, nos termos da jurisprudência do STJ, a 5ª Câmara Cível do TJPR passou a analisar a questão à luz do princípio da duração razoável do processo, anulando processos abandonados pela Administração por um período superior a cinco anos – para a definição desse prazo foi utilizado por analogia o Decreto nº 20.910/32. Nas palavras do Desembargador Nilson Mizuta, é imprescindível que a Administração Pública observe o postulado constitucional da duração razoável do processo e apure eventual infração consumerista em prazo adequado conforme às peculiaridades do caso concreto. Busca-se evitar que o processo perdure indefinidamente, gerando morosidade para a Administração como um tudo, e criando uma verdadeira “pena perpétua” ao administrado”.

A 4ª Câmara Cível do mesmo Tribunal, por outro lado, não adota esse entendimento, argumentando que ele se traduz, em verdade, na aplicação do instituto da prescrição intercorrente aos processos administrativos estaduais e municipais, hipótese não permitida pela jurisprudência pacífica do STJ. Nas palavras da Juíza Sandra Bauermann, “[…] considerar o prazo de duração do processo administrativo antes do efetivo início do prazo prescricional é o mesmo que aplicar a prescrição intercorrente no caso, impossível por ausência de previsão legal”.

Essa divergência de entendimento entre as Câmaras, inclusive, já chegou ao conhecimento da Presidência do Tribunal, que instaurou Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR) para pacificar a controvérsia – IRDR nº 29. Ciente do risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica pela abundância de decisões conflitantes sobre o mesmo tema, decidiu a Presidência do TJPR pela instauração de IRDR a fim de que a Seção Cível competente delibere e eleja tese a ser adotada no âmbito do Poder Judiciário Estadual. O assunto submetido a julgamento ficou assim resumido: “Possibilidade de anular multas aplicadas pelo Procon/PR em razão do decurso de tempo entre a instauração e a conclusão do processo administrativo”.

A questão que se coloca, portanto, é se o princípio da razoável duração do processo pode dar supedâneo para a anulação de processos administrativos abandonados pela Administração por prazo superior a cinco anos. Entendemos que sim.

Primeiro porque, nos termos do § 1º do 5º da Constituição da República, as normas que veiculam direitos e garantias fundamentais possuem aplicabilidade imediata, isto é, sua aplicação a casos concretos por parte do Poder Judiciário não depende de prévia mediação legal. Nas palavras Paulo Gustavo Gonet Branco, “O art. 5º, § 1º, da CF, autoriza que os operadores do direito, mesmo à falta de comando legislativo, venham a concretizar os direitos pela via interpretativa”.

Nesse sentido, o fato de não existir legislação infralegal regulamentando certo tema não autoriza que o Estado viole direitos e garantias constitucionalmente garantidos, dentre eles a duração razoável do processo. As normas definidoras de direitos e garantias fundamentais não podem ser concebidas como destituídas de eficácia jurídica, como se meras figuras retóricas fossem. Se é bem verdade que da regra de aplicabilidade imediata não podemos concluir que todos os direitos fundamentais podem ser exercidos em sua plenitude sem alguma espécie de intermediação legislativa, também é verdade que por imposição constitucional tais normas jamais podem ter sua proteção negada com base no argumento de que são normas meramente programáticas e de eficácia limitada.

Se é assim, existiria algum entrave para a anulação de processos administrativos abandonados pela Administração com base no princípio da duração razoável do processo? A resposta é negativa. Basta notar, inicialmente, que tal princípio é aplicável aos processos administrativos, conforme a redação inicial do inc. LXXVIII do art. 5º da Constituição, de modo que não há o que se falar na sua incidência somente aos processos judiciais. Além disso, conforme se extrai da segunda parte da redação do dispositivo, o texto constitucional assegura não só a razoável duração do processo como também exige que sejam assegurados os meios que propiciem a celeridade da tramitação dos feitos.

Isso quer dizer que cabe ao Estado, tanto na posição de parte processual, como na posição de Estado-juiz, atuar no sentido de conferir ao princípio da duração razoável uma dimensão normativa plena. A partir disso, o simples fato de o legislador estadual ou municipal não ter se atentado para a necessidade de edição de legislação regulando os prazos da prescrição intercorrente no âmbito dos processos administrativos, não pode ser tido razão suficiente para que os cidadãos se vejam reféns de processos intermináveis. Nesse sentido, inclusive, já decidiu o STJ que “Não é lícito à Administração Pública prorrogar indefinidamente a duração de seus processos, pois é direito do administrado ter seus requerimentos apreciados em tempo razoável, ex vi dos arts. 5º, LXXIII, da Constituição Federal e 2º da Lei n. 9.784/99”.

Ademais, conforme a parte final do inc. LXXVIII do art. 5º da Constituição, é dever do Estado propiciar mecanismos aptos a garantir o exercício do direito à duração razoável do processo por parte de seus destinatários. Um desses mecanismos, sem dúvida, é o estabelecimento de prazos prescricionais como forma (i) de punir o órgão público que abandona injustificadamente o processo e (ii) de garantir ao cidadão que ele não se verá refém de processos eternos em virtude da morosidade da Administração em movimentá-los. Com efeito, o instituto da prescrição intercorrente está diretamente relacionado ao princípio da duração razoável do processo, podendo ser considerado um dos principais meios de garantia de aplicabilidade concreta dos efeitos deste último.

Não há, pois, qualquer impeditivo legal para que a nulidade de processos administrativos estaduais e municipais por excesso de morosidade seja declarada com base em um fundamento diferente daquele proibido pelo Superior Tribunal de Justiça – até mesmo porque, como visto, existe uma relação direta entre o princípio da duração razoável dos processos e o instituto da prescrição intercorrente. Há, em verdade, mandamento constitucional determinando que os processos administrativos não podem durar indefinidamente, devendo ser solucionados em tempo razoável. Note-se, ainda, a racionalidade do entendimento da 5ª Câmara Cível do TJPR, que diante na inexistência de legislação local tratando do tema não se substituiu ao legislador e impôs um prazo qualquer para a decretação da nulidade dos processos por abandono da Administração, mas adotou por analogia o prazo quinquenal previsto no Decreto nº 20.910/32.

Neste ponto, importante voltar os olhos para o art. 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), que autoriza expressamente o juiz a fazer uso de analogias quando a lei é omissa. É claro que não é lícito ao juiz atuar como se legislador fosse, mas, por outro lado, se existe princípio constitucional impondo que os processos administrativos devem ser resolvidos em tempo razoável e o legislador não cria mecanismos aptos a concretizar esse princípio, tal como a regulação da prescrição intercorrente, passa a ser função do Judiciário fazê-lo através, por exemplo, do recurso a analogias.

Os princípios constitucionais possuem natureza deontológica, isto é, devem ser vistos como padrões decisórios que geram um dever de obediência por parte daqueles a que eles se destinam. Por isso, quando o constituinte erigiu a duração razoável do processo ao nível de princípio constitucional passou a existir um dever do Estado de concretizá-lo por meio da implementação de mecanismos aptos a garantir que os processos não durem indefinidamente.

Um dos principais meios dessa concretização, como vimos, é o estabelecimento de prazos prescricionais como forma de coibir posturas morosas por parte de todos os envolvidos no processo, sejam partes ou julgadores. E se o legislador local se omitiu do seu dever de conferir aplicabilidade prática ao princípio em comento, a conclusão não deve ser a de que os indivíduos estão sujeitos a processos administrativos infindáveis, mas sim a de que passa a ser possível ao juiz fazer uso do instituto da analogia para resolver essa situação de omissão. E se existe Decreto estabelecendo o prazo prescricional de cinco anos para os processos administrativos e tal normatização não abarca a hipótese de prescrição intercorrente, nada impede que o juiz, como forma de concretizar o princípio da duração razoável dos processos, aplique por analogia esse prazo quinquenal também como hipótese de prescrição intercorrente.

Seja como for, a controvérsia em questão, ao menos no âmbito do Estado do Paraná, foi superada com a edição da Lei Estadual nº 20.656, em agosto de 2021, que em seu art. 95, § 4º, estabelece que “Incide a prescrição no processo administrativo disciplinar paralisado por mais de três anos, pendente de julgamento ou despacho, cujos autos serão arquivados de ofício ou mediante requerimento da parte interessada, sem prejuízo da apuração da responsabilidade funcional decorrente da paralisação, se for o caso”. Como visto, é o entendimento do STJ que somente é possível a decretação de prescrição intercorrente nos processos administrativos estaduais caso exista legislação local regulando o tema, e no Paraná existe lei não só reconhecendo a possibilidade de prescrição intercorrente como também estabelecendo o prazo de três anos para tanto, à semelhança do disposto no § 1º do art. 1º da Lei nº 9.873/99.