O atual movimento de encerramento de contratos de concessão e a substituição de empresas públicas por privadas no setor de saneamento trouxe à tona novos desafios. Dentre eles, o enquadramento jurídico a ser dado à empresa que assume o serviço diante das relações da empresa anterior.
A perspectiva equivocada da sucessão
Inicialmente, importante observar que a prestação de serviços públicos deve observar o dever de continuidade, de forma que quando há substituição dos prestadores, aquele que assume deve atuar sem que haja interrupção na prestação dos serviços. Isto é, a troca ocorre sem solução de continuidade, o que dá a crer que o vínculo novo seria a continuidade do antigo.
Contudo, trata-se essa de uma perspectiva equivocada. Do ponto de vista jurídico, não há qualquer sucessão. A relação jurídica estabelecida entre o concessionário novo e o usuário não é a continuidade do vínculo antigo, mas uma relação integralmente nova.
Ocorre que não são raras as decisões judiciais que, por conta da continuidade da prestação, pretendem que o novo concessionário seja sucessor do antigo, no sentido de que as relações jurídicas dos operadores antigos devem ser direcionadas ao novo concessionário, tornando-o responsável por elas. Esse modo de enxergar a questão não só é juridicamente equivocado, mas coloca em risco os novos projetos.
Se não de sucessão, qual a relação jurídica estabelecida entre empresas concessionárias do serviço público?
O contrato de concessão é título jurídico originário. Ele cria uma relação nova que, ainda que exercida a partir de ativos que antes eram geridos por outra empresa (privada ou pública), não constitui qualquer espécie de sucessão. O vínculo que se forma não constitui, do ponto de vista jurídico, uma sucessão entre empresas. Não é a empresa “x” que transfere para a empresa “y” suas atividades. [1]
Muito pelo contrário. O que há é o encerramento da primeira relação e a criação de uma completamente nova. O contrato novo em nada se confunde com o antigo. No encerramento da concessão, cabe ao concessionário antigo responder por todos os compromissos por ele assumidos ou, em casos limites, essa responsabilidade é do próprio Poder Concedente.
Com efeito, o novo concessionário assume um empreendimento em que os passivos por ele assumidos são aqueles descritos no contrato por ele assinado. Essa é a regra do jogo que será considerada durante a execução dos serviços. Se não houvesse essa cisão entre os riscos, as concessões seriam negócios muito mais arriscados.
Isso impede que se impute qualquer espécie de sucessão entre os operadores, salvo em hipóteses muito restritas relativas às chamadas obrigações propter rem, em que a transferência de um bem transfere as obrigações correlatas. Em termos simples: sucessão é excepcional e só existe quando prevista de modo expresso em lei.
Por que não atribuir ao novo concessionário as obrigações do concessionário antigo?
A justificativa usualmente invocada para atribuir ao novo concessionário as obrigações do concessionário antigo é proteger o usuário, que não pode ser “prejudicado” pela alteração.
Ocorre que esse modo de encarar o problema despreza o fato de que projetos de concessão não buscam beneficiar usuários considerados individualmente, mas garantir condições adequadas para todos.
Ao desenhar o contrato, o que se busca privilegiar é o maior benefício à coletividade. Isso sem contar que muitas vezes esses contratos lidam com desafios complexos de levar o serviço para onde ele ainda nem sequer existe. Em suma, há muitos outros interesses em jogo que vão além da proteção do usuário isolado.
Em uma frase simples: não se pode desprezar os efeitos sistêmicos desses contratos. Nas concessões as boas intenções, quando descoladas de aspectos técnicos, usualmente criam custos extraordinários que prejudicam o próprio interesse público. É importante ter isso claro para não prejudicar aqueles que, em tese, se quer beneficiar.
Em tais arranjos, os riscos assumidos pelo particular são os definidos no contrato, e toda vez que um custo extraordinário (isenções, congelamentos tarifários, etc.) onera a execução do contrato, o concessionário terá direito à recomposição. E isso não se dá de modo neutro em termos financeiros.
Conclusão
A recomposição do capital do concessionário deve ser remunerada, e isso considerando os riscos do empreendimento. E, por definição, a taxa que remunera um investimento que implica altos riscos – como é a concessão – é superior àquela de risco inferior. Isso quer dizer que no momento de compensar o particular por riscos não assumidos por ele, essa conta será mais cara do que a mera reposição do montante do dispêndio imprevisto, afinal, ao valor do prejuízo será somado o valor a ser gasto com a recomposição da remuneração do contratado.
E, é claro, quem paga essa diferença são os próprios usuários. Daí porque alocar custos imprevistos ao concessionário é, na melhor hipótese, uma péssima estratégia, sobretudo em termos financeiros.
Ademais, imputar ao novo concessionário as obrigações do concessionário antigo sem que isso esteja amparado contratualmente conturba a execução do contrato, prejudicando, em última análise, o interesse público. E pior: essa perturbação contratual ocorre em um momento especialmente crítico, quando estão sendo realizados os primeiros investimentos necessários à implantação do sistema.
Enfim, imaginar que concessionários que assumem a execução dos contratos são sucessores dos antigos não é só tecnicamente equivocado. É colocar em risco o sucesso dos novos empreendimentos. Desconsiderar isto é adotar uma postura ingênua acerca dos efeitos das decisões judiciais sobre esses contratos.
Escrito por
Bernardo Strobel Guimarães
Caio Augusto Nazário de Souza
Flávia Smolka Santana