A Lei nº 14.133/2021 inovou ao estruturar a chamada fase preparatória — também conhecida como fase interna da licitação. Durante a vigência da lei anterior (Lei nº 8.666/93), a fase interna não era objeto de cuidadosa sistematização; embora houvesse normas esparsas que continham previsão do que deveria ser feito antes de dar publicidade à convocação, a elas faltava organicidade.
Na nova lei, a ideia é que as contratações deixem de ser pensadas como meros modos de satisfação pontual de necessidades públicas e passem a ser enxergadas e compreendidas dentro de uma estratégia maior, capaz de capturar eficiências em favor da Administração e da sociedade.
Elogios e críticas à nova regulamentação da etapa de planejamento
Muitos dos problemas experimentados no decorrer da execução do contrato decorrem de falhas de planejamento. Embora essa etapa ocorra preponderantemente nas entranhas da Administração, longe dos olhos da publicidade e da transparência imediata, sempre teve reflexos importantes no procedimento licitatório e no decorrer da execução contratual. Assim, em boa hora, o planejamento da licitação passa a ser regulado de maneira minuciosa.
Seja como for, em que pese os pontos positivos, há que se criticar a excessiva regulamentação levada a cabo pelo legislador. Se é verdade que o silêncio da lei anterior era prejudicial, também é verdade que uma previsão tão extensa e fechada vai na contramão da atual lógica do Direito Público no Brasil: a desburocratização da Administração Pública.
Qual é o impacto do planejamento na contratação pública?
Pois bem. Planejamento é o processo pelo qual se organiza e racionaliza ações em busca de um determinado objetivo. Especificamente na área das contratações públicas, o planejamento, se bem pensado, permite ao contratante visualizar o melhor curso de ação para a satisfação das suas necessidades, seja procedimentalmente, a partir da adoção de medidas mais eficientes, ou financeiramente falando.
Não por outra razão, Edgar Guimarães afirma que “O planejamento material, concreto e eficaz de uma licitação tem tamanha importância a ponto de ser possível sustentar que se trata de fator determinante para o sucesso ou fracasso da competição e da própria contratação almejada”.
A fase interna das licitações
Neste ponto está a grande importância da fase preparatória. É nela que cabe ao gestor identificar, entre outros:
(i) a necessidade que deve ser suprida por meio da contratação;
(ii) o objeto que melhor supre essa necessidade;
(iii) o regime de competição que será incorporado na licitação;
(iv) os elementos básicos que devem estar presentes no edital de convocação.
Se o administrador falhar nessas tarefas preliminares, o Poder Público pode acabar contratando um bem ou serviço que não atenda às suas reais necessidades ou um bem ou serviço capaz de fazer frente às suas necessidades, mas por preço acima do praticado no mercado; poderá também impor restrições indevidas no edital, prejudicando assim a competição entre os licitantes e dando causa à posterior anulação do certame por parte do órgãos de controle; poderá, ainda, deixar de levar em conta aspectos relevantes para a contratação, como as especificações técnicas básicas do produto etc.
É necessário, todavia, advertir que planejar não significa eliminar os riscos. Um bom planejamento não garante necessariamente o sucesso da licitação e a boa execução do contrato pelo particular.
O que importa é saber se houve discussão e estudos sérios e responsáveis a respeito da contratação. Embora um planejamento adequado transmita uma maior segurança aos gestores e aos particulares, garantir o sucesso da licitação simplesmente não é possível. Erros podem acontecer, mesmo diante do melhor dos planejamentos. O importante é examinar se a etapa preparatória foi capaz de identificar os principais riscos e adotar medidas capazes de mitigá-los.
O Estudo Técnico Preliminar (ETP) e a fase interna da licitação
Dentre os diversos elementos que devem ser considerados pelo gestor na etapa de planejamento (ou seja, a fase interna da licitação) merece destaque a previsão de um documento inicial, chamado de estudo preliminar (art. 18, § 1º), que, apesar do que o nome possa indicar, é de fundamental importância e nada tem de simples.
O Estudo Técnico Preliminar consiste numa espécie de guia da contratação. A ele compete definir com precisão a necessidade a ser satisfeita (o problema) e o modo pelo qual ela será satisfeita (a solução).
E para responder essas questões, novamente a lei foi minuciosa e indicou de maneira pormenorizada o conteúdo do estudo preliminar, que não deve se limitar a afirmar em abstrato a necessidade e a solução, e sim enfrentar diversas questões acerca da contratação já na fase de planejamento.
Nos termos do § 2º do art. 18 da Lei, são elementos que obrigatoriamente devem constar no ETP: a) descrição da necessidade da contratação, considerado o problema a ser resolvido sob a perspectiva do interesse público; b) estimativa das quantidades para a contratação; c) estimativa do valor da contratação; d) justificativas para o parcelamento ou não da contratação; e) posicionamento conclusivo sobre a adequação da contratação para o atendimento da necessidade a que se destina. Esses são, contudo, os elementos obrigatórios. Os incisos do § 1º do art. 18 preveem outros oito elementos, que embora não sejam estritamente necessários, a ausência de quaisquer deles no ETP deve ser justificada pela Administração (§ 2º do art. 18).
Ademais, foi publicada em 09.08, pela Secretaria de Gestão do Ministério da Economia, a Instrução Normativa nº 58/2022, que dispõe sobre a elaboração dos Estudos Técnicos Preliminares no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional, e sobre o Sistema ETP digital. Embora tal regulamentação não apresente substanciais inovações, até mesmo porque seu objetivo é somente detalhar aquilo que já está previsto em lei, sua existência já denota a importância que o ETP possui para o sistema de contratações públicas brasileiro.
A importância do Estudo Técnico Preliminar para a fase interna da licitação
A partir do ETP, a decisão de contratar deve ser resultado de um fluxo de estudos para definir qual é a necessidade da Administração e a melhor maneira de satisfazê-la.
Trata-se de documento que serve de balizamento para toda a etapa interna, fixando o que deve ser detalhado dali em diante até se chegar à divulgação do edital de licitação. Por isso, é comum se dizer que, em alguma medida, todo o procedimento interno configura o desenvolvimento daquilo que já está contido no estudo preliminar, verdadeira bússola do procedimento de estruturação da licitação.
Isso não significa, é claro, que aquilo que está no ETP é imutável. Alterações e modificações são possíveis e muitas vezes essenciais, mas devem ser fundamentadas. Em regra, as etapas posteriores ao estudo são a concretização das premissas nele expostas, assumindo o procedimento interno inegável, aspecto procedimental, que se desenvolve a partir de um contínuo refinamento das opções consideradas, refletindo as escolhas da Administração.
Conclusão
Em uma palavra final, é positivo o destaque que a nova lei de licitações conferiu à fase interna dos procedimentos licitatórios, sobretudo num país em que o sistema de contratações públicas “derreteu”.
Sob a regência da Lei nº 8.666/1993, a Administração Pública, ao realizar suas contratações, paga mais caro que qualquer outro agente de mercado e, mais que isso, gasta vultuosas quantias de recursos públicos para custear um processo administrativo burocrático, litigioso e ineficiente.
Se com a Lei nº 14.133/21 essa situação vai mudar, não sabemos. Somente nos resta torcer para que o planejamento tome conta dos nossos administradores.